terça-feira, 11 de dezembro de 2007

A preferida

Por trás da fumaça branca dava pra ver o cinza dos seus olhos opacos. Os lábios um pouco sorrindo tinham um leve brilho cor de boca. A expressão que dizia tudo contrastava com as pernas jogadas em calça jeans rasgada. Não era estilo, era excesso de uso.
Ela se recostou na cadeira, fazendo a madeira velha ranger. Ao seu redor, poucos móveis, e todos diziam nada além do que deviam dizer. Era apenas mobília.
E era assim, mais linda, sonolenta, preguiçosa, que ela arrastava algumas palavras, entrecortadas pelo riso e uma tragada volta e meia.
No chão, um copo quebrado deixava escorrer o líquido que penetrava nas frestas do chão e espalhava-se quase sumindo. Pontas das meias gastas mostravam um pedaço do calcanhar de tanto rastejar. Ela não erguia-se para andar...
E num momento breve de quase susto levanta e arremessa a cadeira pela janela. Escolheu a fechada. Gostava do som do vidro quebrando e logo mais não teria mais vidros para quebrar.
Rindo, sentou-se no chão e juntou os cacos. Com uma ponta afiada, cortou um pedaço do cabelo e estendeu em minha direção.
- Tome, agora me tens por completo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Retalhos

O tempo passava e ele já não tolerava mais ver sua imagem refletida na janela à sua frente. Não importava para onde olhasse, sempre acabava fitando aquele rosto sem vida, pele ressecada do frio, olheiras permanentes, o cabelo parecia imundo, apesar de ter lavado naquela mesma manhã. Não suportava mais ver aquela combinação de camisa xadrez e calça jeans desbotada.
Ao analisar aquela figura magra, sentada sem postura nenhuma, ocorria-lhe a figura de um adolescente. Sim, era isso que o incomodava tanto. Parecia exatamente com um garoto de dezesseis anos, revoltado, na espera da sala do diretor, chamado mais uma vez por um ato de indisciplina na escola.
Perdido naqueles pensamentos sem qualquer finalidade, ele nem mais percebia o corre-corre dos médicos e enfermeiras à sua frente. Algumas horas atrás, estava mais para um repórter de fofocas, correndo desesperado atrás de cada indivíduo de avental branco que surgisse no corredor. Mas agora estava inerte. Seu corpo já não se mexia há algum tempo e ele chegou a pensar que poderia ter solidificado seus pés no chão.
Mais algumas pessoas passaram por ele, enquanto sua mente retrocedia lembrando das músicas que tanto ouvira na sua juventude. As letras eram sempre um reflexo do que ele sentia na época. Por isso, cada música marca uma fase de sua vida. Como um hino. Um hino em memória a um período confuso, crítico e totalmente improdutivo da vida de um garoto de classe média que não queria absolutamente nada com coisa nenhuma.
E foi essa cena que Dr. S. viu quando entrou na ala da maternidade da Santa Casa. Um homem em torno dos cinqüenta, cabelos grisalhos nas têmporas, algumas linhas marcadas no rosto pelas preocupações da profissão. No entanto, a imagem geral era muito jovial. Corpo em forma, olhos de um cinza-claro que lembravam muito bem os dias nublados de inverno. Impecável no seu jaleco, ele foi se aproximando do homem que estava sentado desajeitadamente no banco do corredor, recusando a hospitalidade da casa que oferecia uma ampla sala de espera logo adiante.
- Com a sua licença Sr. J., sou o médico responsável pela internação da sua esposa.
Aguardou uns instantes para que o jovem à sua frente voltasse à Terra.
- Aham... – respondeu J. ainda distraído.

Como nuvem disperso e transformo... em formas que longe vão...

- O médico limpou a garganta e se movimentou desconfortável, tentando reaver a postura.
Devo informar-lhe que ela está passando bem no momento. Dentro de algumas horas o senhor poderá até mesmo fazer-lhe uma visita.

Tão longe posso chegar... não há potes de ouro no fim...

- Assim, acho que seria bom o senhor aproveitar o momento para comer alguma coisa, reanimar o corpo. O nervosismo provoca muito cansaço físico. – prosseguiu o médico.
- Tudo bem... – foi o que conseguiu pronunciar... Agora não fazia mais diferença.

Fica na memória... não morre... se faz fumaça e paira no ar...

terça-feira, 23 de outubro de 2007

O vento leva

Bom te ver abrindo os olhos, percebendo as cores... Tracei um caminho e te vejo agora percorrendo-o aos poucos, um tanto temerosa, um tanto curiosa. Não pisa mais nas minhas pegadas, já faz as próprias marcas, querendo mostrar que esse caminho pode ser o teu também.
É bom te ver perder a penugem, questionar os sonhos... Sei que é doloroso, não há outra fórmula. Se houvesse, certamente já teria te mostrado.
Simplesmente tu abre a porta e olha para trás. Não sei se espera que eu peça para ficar, mas apenas fico lá te observando. Não vou correr e segurar tuas pernas. Pelo contrário, posso até chegar ao parapeito e te dar um empurrão. Assim voarás mais alto... mesmo que eu saiba que é difícil querer ficar no chão depois que se aprende a voar.
Pois agora fica aquele vazio estranho debaixo das minhas asas, não posso mais te segurar.
Quero, e quero sempre que voe, que sinta o vento contra o rosto e perceba que pode vencê-lo fácil. Ignore meu olhar perdido, meu sorriso morto. Ignore se eu te parecer tão longe quando olhar lá do alto e minha imagem diminuir até sumir. Faço isso para que vire para frente e veja o mundo que te espera. E espero e quero que esse mundo seja lindo e imenso, tanto que mal encontre tempo para conhecê-lo totalmente. E que o medo de cair passe logo, pois quando aprender a dominar teu vôo, o percurso ficará tranquilo e só aí compreenderás... só então saberás quando parar. Pois sempre poderá recomeçar tão logo ouça os ventos te chamarem.

O travesseiro perdeu teu cheiro, ou será que teu cheiro não é mais o mesmo?

domingo, 30 de setembro de 2007

Leve o tempo

Abra os olhos e não me procure.
Seja para quem for, seja para ninguém. Não estarei aqui quando acordar...
Não sei onde posso estar, mas é longe, longe demais de tudo, longe demais de mim.
Onde estou há uma brisa fresca. Não está chovendo, mas sinto gotas de água limpa caindo no meu rosto.
Sob os pés, chão suave e macio, posso estar flutuando...

Aqui o ar é puro e posso respirar profundo sem o peso grotesco e pegajoso que me cola à pele.
Aqui estou limpa e meu corpo sente a luz.

Abra os olhos e sinta o dia chegar. Apenas por saber que ele logo se vai, mas que mesmo assim deseja ver teus olhos mais essa vez.
Toque os lençóis e sinta como é leve... E leve solta, leve folha que tomada pelo vento como a brincar jamais toca o chão.

Leve o tempo que for, deixe-se levar...

No fim do dia, posso estar de volta depois que seus olhos fecharem.
Mas pela manhã, ao acordar, não espere me ver lá.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Instante eterno

As lágrimas estão lá o tempo todo, apenas aguardando um motivo para cair...
Talvez porque a dor seja sempre mais forte do que os momentos de felicidade tão breves. Estes de vez em quando até enganam. Aparecem de repente afastando qualquer nuvem e tão rápido como surgem, lá se vão em poucos instantes, deixando apenas um leve gosto na boca.
Ilusória comparsa... só se percebe a luz quando há escuridão.
Ainda que não se deseje alcançá-la, mesmo assim não se tenta evitá-la. E a todo momento ela se percebe naquele lugar: à sua frente, um imenso vazio; às suas costas, chão a perder de vista. "Junto ao precipício só vai quem vai além". É sua mente cantarolando em tom ameaçador e convidativo.
E de fato ela sempre vai além. E agora é isso que resta, uma tentativa vã de afogar o soluço e a sensação de que não se sabe o por quê. O que se sabe apenas é que, por mais que se vá, sempre haverão outros precipícios...
Afinal, tudo é tão claro e se passar um dia ou dois, nem sequer se lembrará o quão profunda é a cova. Mas no momento é só a dor tentando provar que sempre está lá, não importa para onde se vai, para onde se olha. Cruel amiga inseparável que se faz lembrar a todo instante através das pedras que ela insiste em chutar, mesmo sabendo que os pés podem sangrar.
Pois chega uma hora em que não há mais o que largar, então se abandona a si mesmo. E mesmo assim, lá estará ela... Imortal inabalável, sedutora melancolia que tantas vezes fez-se de falsa desculpa, agora tão concreta realidade.
Então ela dormirá o tempo que for preciso, e quando acordar, espera não descobrir que cavou tão fundo a ponto de não saber mais como sair.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

De onde vem a força

Venha aqui e mostre tua força, sei que é disso que gosta. Teu olho de caçador detecta meu medo e se diverte. Para ti sou bola de lã, sou inseto indefeso, geléia não tóxica.
Venha e aproveite, vês como sou vulnerável?
Venha, pergunte o que quiser, sempre direi o que espera. Não te chocarei, não te surpreenderei. Pois na mesma proporção em que cresce meu ódio, cresce minha dependência.
Estou presa a ti, na verdade sempre estive. Já nasci com a tua mão agarrada ao meu braço, controlando meu pulso, sugando meu sangue.
Pois eu digo que agora podes vir e fazer o que sempre fez, não vou apresentar resistência, tenho preguiça de lutar.
Venha, chegue perto, aponte teu dedo no meu rosto quando este te parecer erguido demais. Sei que o que tu quer é que eu baixe meus olhos, veja a sujeira dos teus sapatos e me apresse em limpá-los.
Venha e dite tuas ordens absurdas. Mande-me fazer e desfazer por capricho. Eu sei disso, mas farei mesmo assim.
Pois é tu quem decide o que eu como, onde eu durmo e com quem. És tu quem governa e controla meus ímpetos, e grita mais alto quando tento ir além do sussurro.
Venha, fale o que quiser, tu estarás sempre certo. O não travará na garganta, pois verei a chama nos teus olhos lá no alto e não ousarei soltá-lo.
Venha e se aposse da minha sobrevida, eu a tenho somente para ti.
Há tempos não uso relógio, pois sei que a hora certa é a tua. Há tempos não preciso pensar, minhas idéias não valeriam de nada diante de uma ordem tua.
Pois então venha e ordene meus movimentos, eu os podarei e somente guiarei minhas pernas para onde disseres que devo ir. E não desejarei mais o próximo céu, não tentarei pular os muros, pois provei a tua ira e aprendi a lição.
Não sonharei mais quando dormir, tu me ensinaste a acordar antes. E hoje minha mente é tua, me digas o que pensar, e assim o farei quando mandar.
Mas quando te cansar de mim, quando não lhe for mais útil... lembra-te de me jogar num lugar limpo, onde eu possa reconhecer meus pedaços e tentar juntá-los.

domingo, 26 de agosto de 2007

O que não se salva

Há muito tempo ele admitira para si mesmo que era um fracassado. Concluiu isso ainda muito jovem, deixando a certeza adolescente se consolidar. E as raízes, inexperientemente aprofundadas, apenas agora tinham chances de um leve recuo.
Só agora lhe ocorria que se propusera poucas provas para desistir e ainda menos para continuar. Só agora percebia que havia outros atalhos, bastava apenas apurar seus instintos e descobrir quais eram os galhos que poderia cortar. Galhos que antes lhe passaram despercebidos, disfarçados de mata fechada.
Era uma corrida contra o tempo que se mostrava bastante cruel, guiada por um novo medo de chegar ao fim só para confirmar o que partira já sabendo. E aí o caminho percorrido não valeria como experiência, afinal que conforto teria ao constatar que então não era mais apenas um fracassado, mas sim um fracassado desiludido e cansado?
Para ele, a felicidade era uma linda e voluptuosa morena de olhos verdes, dessas que protagonizam as melhores fantasias de qualquer mortal. Era desejada e sabia disso. Assim como ele sabia que jamais a teria. Todos os dias ela o provocava, incentivava-o a tentar. E ele, cego de desejo, sempre tentava.
Havia um certo prazer para ela em manter esse jogo. E quando ela percebia que ele estava prestes a desistir, ela chegava bem perto e o deixava sentir seu perfume. Isso o enchia de energia para tentar mais uma vez.
Mas em alguns momentos ele realmente se cansava daquilo. Aquela promessa que nunca se cumpria o fazia sentir-se tolo, acabando por preferir conquistas mais fáceis.
Então se enganava para tentar engolir realidades que na verdade lhe eram intragáveis. E ao enganar-se, enganava também aos desavisados que vez ou outra caíam na sua cilada velha e manjada. Algumas vezes dera-se ao luxo de rir disso tudo, mas até mesmo quando ria, soava triste. E como cansara de sentir pena da própria infelicidade, mas também agora rir era inviável, tentava encontrar uma nova forma de arrancar as grades que ele mesmo colocara ao seu redor.
Pois pior fracasso não é encarar a própria escuridão, mas apagar a luz daquele que ainda sonha. E se assim foi, não há mais como desfazer...
E já que descobriu que não é capaz de salvar, pensa que já seria menos desastroso se pudesse ao menos fazer de tudo aquilo algo um pouco – bem pouco – menos insuportável. Só para que consiga respirar por mais um tempinho, antes de deixar que seu peso o leve para o fundo com tanta força que em segundos a água o invada e tome conta de vez dos seus pulmões.

domingo, 19 de agosto de 2007

O primeiro que morre

Aqui do alto da minha arrogância te vejo aí em silêncio, tão baixo que mal posso definir teus traços. Tu te escondes na sombra, tenta desaparecer como uma criança triste que sempre é alvo de deboche na escola.
Eles apontam o dedo cruel e dão gargalhadas sonoras, e tu deixas porque pensa que é assim que tem que ser. Não questiona mais, não chora mais. Apenas baixa a cabeça na humildade que te ensinaram ter, esperando o dia da recompensa.
Aqui de cima vejo tudo e por um tempo tento pegar tua mão. Por um tempo tento te ensinar a olhar de frente, mas demoro a perceber que só conseguiria fazer isso se me agachasse e ficasse à tua altura. Os olhos ficariam frente a frente e aí sim tu teria a chance de compreender melhor as minhas palavras.
Mas não aprendo isso a tempo de salvar o que te resta. E tu estás mais disposto a continuar no mesmo chão, a contar formigas e promover-lhe chuva grossa de lágrimas.
E por não aprender isso a tempo, eu passo a caminhar mais alto. No caminho, não percebo mais onde piso, não vejo que chuto as pedras e destruo as paredes antes tão sólidas. Pois minha cabeça continua erguida e meus olhos, sempre voltados para dentro, não te vêem mais e não reconhecem tua forma. Como um animal que só percebe o movimento da sua presa, eu passo por ti sem notar, e posso até, vez ou outra, ter pisado nas tuas mãos apoiadas no chão, naquelas raras tentativas de se erguer.
A boa ação se transforma e pesa cada dia mais. Agora não vejo mais tanto sentido. Agora que meu peito congelou e minhas pernas se alongaram, não consigo mais te aquecer nem dobrar os joelhos.
Minha mente não está mais aqui e sempre que isso me causa dor, afasto o pensamento. O sol me agrada mais e teu toque desesperado de atenção me aflige, deprime, me faz pensar no lixo que varri para baixo do tapete e que está lá há tanto tempo que já começa a feder.
E talvez porque não haja uma saída honrosa, acabo afogando a melancolia em risos gratuitos, fingindo não ser necessário decidir. Não agora. Mas de agora em agora, caminho pelo corredor sem fim destruindo o pouco que resta da velha construção. Nem percebo que, no caminho, permiti que meus pés esmagassem as formigas e interrompessem sua trilha.
Isso te magoou, eu sei. Mas preferi ouvir música alta a ouvir tuas lamúrias. Não por que elas me chateiem, mas porque não tenho as respostas.
Ou talvez o que eu não tenha é a coragem de responder.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Tudo o que não tivemos

Os dedos percorriam a superfície lisa, mas sem curvas, da velha estante da sala. Uma fina camada de pó tornava-se perceptível somente com o toque. Nada fica limpo o tempo todo. Os olhos pararam diante dos velhos porta-retratos e os lábios ensaiaram um sorriso meio torto. As velhas fotos estavam lá há anos. Talvez por descuido, talvez por não haver outras para substituir... Mas realmente acreditava ser por estarem ali há tanto tempo que nem sequer eram mais notadas. Viraram partes de um cenário, tão fixas e eternas quanto as manchas amareladas dos quadros retirados da parede na última mudança.
Isso lhe trazia um pouco de conforto. Mas não o conforto esperado, no real sentido da palavra. Este não acreditava sentir mais naquele lugar. Era o conforto amargo de se sentir como sempre se sentira.
Afinal, o que fez tudo aquilo deixar de ser tão familiar? Sabia a resposta, sempre soube, mas gostava de se fazer a mesma pergunta a cada vez. Talvez uma rala esperança de mudar o resultado. Talvez querendo acreditar que o tempo a faria pensar diferente...
Mas sabia sim. O que deixa de ser familiar é o que nunca foi. Onde nunca se sentira verdadeiramente parte, jamais conseguiria ser. Nem as mais doces memórias, nem as mais agradáveis lembranças teriam a força de mudar o que nunca existiu.
Aquilo nunca fora seu, então nunca será. E nunca tendo sido, como sentiria diferente?
A verdade é que gostava de fantasiar que um dia estaria ali, diante da mobília velha com ar imperial, e sorriria um sorriso puro e sincero, respirando aquele ar com perfume de lavanda... pensando em como era bom estar em casa novamente.
Ouviria aquela voz de sempre, sentiria o calor do sol que refletia no tapete macio todas as tardes. E aquilo seria seu.
Mas estava diante das mesmas fotos de tantos anos, os traços tão mudados mas ainda tão presentes naquelas imagens meio apagadas. E o sorriso virava um aperto ao ver que ainda era o mesmo da menina enfeitada com laços no cabelo. Os pequenos olhos de criança que deveriam ter olhado para a câmera estavam tão perdidos como agora.
Ninguém viu nesses anos todos, mas nem teriam como perceber. Lembrava nitidamente daquele dia. Lembrava do que estava pensando naquele exato momento que um flash tentou mascarar.
Mais sombrio do que esta lembrança era saber que os pensamentos também se haviam congelado. Mais de 20 anos se passaram e os sonhos ainda eram os mesmos. E naquele momento viu que sempre seriam, pois realizá-los era algo que já não fazia mais parte dos seus planos.
Continuou a passar o dedo por entre os desenhos da madeira envernizada. O tempo agora teria que ser seu amigo, logo estaria na sua casa sem retratos.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Cacos de risos

E quem é que pode dizer que isso não é perfeito... Quem mais pode dizer o que devia ou não ter sido feito?
Por mais que ela tentasse, não conseguia ler aquela imagem. Não conseguia traduzir os lábios ressecados, dentes escurecidos expostos, forçando um sorriso tão obscuro.
Quando se sorri, se sorri com os olhos, pois o que se deixa sorrir é o corpo inteiro. Mas o que ela via era uma paródia grotesca de momentos que já se foram, partes tão puras de coisas que poderiam ter sido.
Fechou os olhos, respirou fundo. Mais uma tentativa. Mas não, não existia alegria ali. Não que ela não soubesse disso, apenas acreditava que lá no fundo, bem no fundo, se fizesse muita força, conseguiria resgatar o brilho quase apagado. Aquele que foi seu sol por tantos dias. Que envolvia o mundo numa cor suave e perfumada, hoje transformada em nada.
Tudo isso vinha dela, por isso agora se esvaía tão rápido quanto a água no ralo. E deixava-se congelar depois de um banho quente, vendo sua pele ficar tão fina e tão frágil que podia moldar-se como vidro, antes que inevitavelmente resfriasse e se enrijecesse em uma forma absurda e confusa.
E que depois de pronta, quebraria-se novamente, pois não aceitava-se a mesma até o fim. E a cada tentativa, perdia uma parte de si... deixava-a para trás e seguia um pouco menor, um pouco mais fraca, um pouco menos valiosa.
E quem aqui é alguém o suficiente para enxergar através desse sorriso... Quem é capaz de perceber que aquele brilho no olhar não é senão uma lágrima preguiçosa que desistiu de dar seu salto?
Gostava de testar seu rosto diante do espelho. Desafiava-o a mostrar o que jamais existiu. E talvez às vezes ele tenha vencido. Ou quem sabe foram os outros que não mereceram, na condição de júri, o benefício da resposta.
Confiante nisso, ela ensaia sorrisos toda noite, para que eles estejam bem seguros amanhã e garantam a paz daqueles que não souberam compreender seus lábios.
Mas um dia essa paz não lhe interessará mais... E em frente ao espelho ela ficará horas descobrindo um novo movimento, quem sabe esse possa ser lido.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Uma humilde visita

Tenho um amigo chamado Franz que apareceu aqui e pediu se podia publicar um texto. Eu deixei, para lhe dar uma forcinha. Segue aí:

O Brasão da Cidade
No início tudo estava numa ordem razoável na construção da Torre de Babel; talvez a ordem fosse até excessiva, pensava-se demais em sinalizações, intérpretes, alojamentos de trabalhadores e vias de comunicação, como se à frente houvesse séculos de livres possibilidades de trabalho. A opinião reinante na época chegava ao ponto de que não se podia trabalhar com lentidão suficiente, ela não precisava ser muito enfatizada para que se recuasse assustado ante o pensamento de assentar os alicerces. Argumentava-se da seguinte maneira: o essencial do empreendimento todo é a idéia de construir uma torre que alcance o céu. Ao lado dela tudo o mais é secundário. Uma vez apreendida na sua grandeza essa idéia não pode mais desaparecer; enquanto existirem homens, existirá também o forte desejo de construir a torre até o fim. Mas nesse sentido não é preciso se preocupar com o futuro; pelo contrário, o conhecimento da humanidade aumenta, a arquitetura fez e continuará fazendo mais progressos, um trabalho para o qual necessitamos de um ano será dentro de cem anos realizado, talvez em meio e além disso melhor, com mais consistência. Por que então esforçar-se ainda hoje até o limite das energias? Isso só teria sentido se fosse possível construir a torre no espaço de uma geração. Mas não se pode de modo algum esperar por isso. Era preferível pensar que a geração seguinte, com o seu saber aperfeiçoado, achará mau o trabalho da geração precedente e arrasará o que foi construído, para começar de novo. Esses pensamentos tolhiam as energias e, mais do que com a construção da torre, as pessoas se preocupavam com a construção da cidade dos trabalhadores. Cada nacionalidade queria ter o alojamento mais bonito, resultaram daí disputas que evoluíram até lutas sangrentas. Essas lutas não cessaram mais, para os líderes elas foram um novo argumento no sentido de que, por falta da concentração necessária, a torre deveria ser construída muito devagar ou de preferência só depois do armistício geral. As pessoas porém não ocupavam o tempo apenas com batalhas, nos intervalos embelezava-se a cidade, o que entretanto provocava nova inveja e novas lutas. Assim passou o tempo da primeira geração, mas nenhuma das seguintes foi diferente, sem interrupção só se intensificava a destreza e com ela a belicosidade. A isso se acrescentou que já a segunda ou terceira geração reconheceu o sem-sentido da construção da torre do céu, mas já estavam todos muito ligados entre si para abandonarem a cidade. Tudo o que nela surgiu de lendas e canções está repleto de nostalgia pelo dia profetizado em que a cidade será destroçada por um punho gigantesco com cinco golpes em rápida sucessão. Por isso a cidade também tem um punho no seu brasão.
Franz Kafka
Traduções de Modesto Carone (direto do alemão)

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Tiro certo

Embalado pelo primeiro tapa no bumbum, o jovem casal chorou sorrindo. E com o mesmo sorriso salgado o pai pôde ouvir os primeiros sons daquele que seria a sua parte no mundo. Sua chance de glória, a vitória que esconderia sua história.
Aquele pequeno ser era a sua grande desculpa. O tapete persa a esconder sua sujeira.
Depois de 22 anos ouvindo essa história, o garoto ainda tentava ligar os pontos. Sabia, mas não aceitava a bola de ferro que tanto lhe pesava os passos. Dia-a-dia tentava apagar com álcool a tinta das linhas há tanto traçadas, mas tudo o que conseguia era fazer um borrão. E dia-a-dia a mancha aumentava tomando formas cada vez mais difíceis de modelar.
Invejava a infelicidade dos poetas, pois dela faziam rima, e por ela alguém sorria... amava. A sua era real. Não tinha graça, não tinha encanto. Ninguém se recostava numa poltrona macia para sonhar com as suas lamúrias.
E se fosse só por falta de talento, ainda assim o seu lamento poderia confortar. Mas aquela dor era ácida, fantasiada de ódio pulsante, lhe fervia as têmporas e escurecia seu mundo cada vez mais.
E não tinha conserto, não tinha palavras para a falta de ser. Pois mesmo sem ver ele sabia que era dele a desgraça. Uma culpa cultivada na infância que cresceu forte e criou raízes. Planta regada nos templos, cortejada pelos mantos, enobrecida pelo ouro de uma conquista sangrenta. Não sabia e nem poderia arrancar do corpo aquela imagem voraz, marcada como tatuagem, que lhe indicava os caminhos de volta para a casa que sempre deveria ser sua.
Mas ele não entendia as coordenadas e insistia em se perder. E perdido estava ainda mais em casa, mesmo que tantas vezes esse teto tenha tentado se romper.
Negava o luxo, apagava o fogo, destruía as porcelanas decoradas com suas iniciais. Pois era no chão duro e frio que conseguia ouvir seu coração bater. Era na embriaguez que sentia o sangue correr.
Não desperdiçaria mais lágrimas pelas pérolas que se espalhavam no chão. Não colecionaria rugas pelas somas intermináveis. Não puxaria o gatilho por aquele que não soube recomeçar.
Choraria agora pelos amores perdidos. Envelheceria sim, mas pela doença da crença.
A última bala falaria por si.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Vinho barato

Eu fico aqui parada sempre nesse lugar, nessa mesma posição. Fico na ilusão de que, se tentar repetir o momento, vou poder mudar a história. Ou pelo menos entender melhor.
Mas vejo sempre a mesma cena, ouço sempre as mesmas palavras, e a compreensão me escapa mais uma vez.
Se eu tivesse fotografado seu rosto naquele instante, talvez tivesse congelado o que seus olhos tentaram me dizer. E talvez as frases tivessem ficado marcadas para que eu te jogasse na cara e te fizesse ver que não tinha mais como esconder.
Porque agora estou aqui. Só eu e essas minhas verdades ralas e inconstantes, turvas afogadas no meu vinho de má qualidade. Em taça de cristal, ele pensa que engana. Mas sua cor e cheiro me fazem rir de tamanha pretensão.
Como ele, também tentei ser mais forte, ser original. Como ele, tentei ser madura e voraz. Tentei ser cara e confiável, sexy e soberana. Mas como ele, tropeço nas minhas falhas e pinto sua boca, entregando minha fraqueza vulgar e insólita. E aí tu me bebe fria, em copo de plástico, para provar que não mereço nada melhor. E do teu lado, já espera a aspirina, santa amiga dessas noites cheias de restos.
Tentei também ser aspirina. Tão fútil tentativa... me desfiz em pó no primeiro sopro. E agora me recolho e me monto, tentando achar uma forma que quebre teu mundo. Sem bases, sem fórmulas, a única que me resta é a verdadeira. Mas esta, como o vinho fingido, foge pelas mãos e mancha a pele, só para avisar que não a posso ter, mas que estará sempre lá.
Esse chão sempre tão firme, racha-se inteiro em pontas afiadas. Ergo os pés, mas ele ataca com pressa. Me causa tonturas, mas não me rendo assim tão fácil.
Tento escrever e a caneta falha. A música está tão alta! Uma batida desajeitada, uma voz desafinada, ela faz as janelas tremerem e dá o recado: não te deixaremos pensar.
Vejo que esse circo dos horrores é um complô, e dou gargalhadas amargas no faz-de-conta de que ainda tenho as rédeas. Mas eles sabem que não tenho nada a não ser uma mente insana que desenha luares perfeitos e sorrisos quentes.
Eles sabem que não tenho nada. Nem a mim... Nem a ti.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Todas as noites

Pontualmente a porta do edifício se abriu e a rua ganhou novas cores. Na outra calçada ele acompanhava com os olhos, fingindo desinteresse, seus movimentos curtos e rápidos. O vento gelado balançava os cabelos lisos cor de fogo parecendo se divertir. De longe ele sentia seu perfume.
Passou a acompanhá-la à distância, mesmo sabendo que não seria notado: ela seguia a passos firmes, jamais olhava para o lado.

Em poucos minutos ela chegava ao seu destino. O mesmo de todas as noites. Não temia mais o perigo das ruas escuras, sabia que estava protegida. Em silêncio, fazia seu percurso rápido, acompanhada pelo calor do seu estranho vigia.

Ele entrou no bar pela porta da frente e sentou em uma mesa afastada da multidão. A mesma de todas as noites. Pediu uma cerveja sentindo no peito a mesma ansiedade de sempre. Acendeu um cigarro e ficou olhando para o palco vazio. A espera era curta, mas trazia o peso de uma eternidade.

Um toque na campainha e a porta dos fundos se abriu. Ela entrou apressada, já tirando o casaco e trocando os brincos. Apesar do frio, lá dentro sempre era quente demais.
Vestiu-se com a rapidez da prática. Conferiu a meia-calça, ajeitou os seios no top rendado. Uma olhadinha no espelho e um sorriso: estava pronta para ele.
Parou na entrada do palco e confirmou sua presença segura lá no fundo, como em todas as noites. Respirou fundo, acenou para o DJ.

A espera chegava ao fim, pôde ver seu vulto no canto esquerdo do palco. A música começou. Seus dentes brilharam num sorriso de quem mata uma saudade.
Ela surgiu devagar. Sempre tão ela!
Gostava de imaginar que ela dançava para ele. No movimento das suas curvas, ele sentia seu olhar chamando. Podia ficar horas ali, aquele momento se bastava.
Queria até sentar mais perto, talvez no lugar daqueles velhos metidos em seus ternos finos, para sentir seus toques. Mas seu ciúme era tanto que não aceitava dividi-la consigo mesmo. Ficava ali, respirando seus delírios.

A casa estava cheia, como sempre. O desejo, pago em notas amassadas, lhe dizia que aquele era o seu lugar. Mas era para ele que ela dançava. Sua mão, percorrendo o próprio corpo, era dele.
Queria até que ele sentasse mais perto. Queria tocá-lo ao invés de respirar fumaça de charutos caros, mas era a distância do corpo que o tornava tão seu.
As luzes dos holofotes não conseguiam ofuscar o brilho daquele sorriso na escuridão. E era só por isso ela estava lá.

As horas voavam, mas ele não ligava mais. No tempo certo, ele se levantou e saiu devagar. O frio cortante não conseguiu esfriar o seu corpo.
Encostado no muro ele aguardou a porta se abrir. Lá estava ela. Novamente com pressa, sem olhar para o lado, seguiu pela calçada no ritmo do seu salto firme contra as pedras imundas.
Ele foi atrás do seu rastro, respirando fundo para guardar seu cheiro.

Ela entrou no vestiário cantando baixinho. Alguém oferece uma carona. Não era necessário, tinha companhia. Vestiu-se e, antes de abrir a porta, sorriu para si mesma. Baixou a cabeça e entrou na madrugada vazia. Lá estava ele à sua espera. Como em todas as noites.
Seguiu rápido pela calçada no ritmo do seu coração.

Poucas quadras adiante, ele atravessou a rua para vê-la entrar no edifício. Boa noite meu amor, murmurou para ninguém.

Ao fechar a porta, ela sorri mais uma vez. Até amanhã, meu bem.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Uma última chance

O ambiente estava um pouco escuro, é verdade. Mas seus olhos se acostumavam rápido com a penumbra. A fraca luz da lua que espiava tímida pela janela até a favorecia. Sorriu um pouco com esse pensamento, mas o triste movimento dos lábios logo se desfez quando seus olhos cruzaram com aquela imagem refletida no espelho.
Ela se aproximou devagar, temendo que os estalos do chão de madeira acordassem alguém. Era muito tarde e a paz daquela casa a tomava de inveja. Torturava-se ao imaginar que todos dormiam tão serenos enquanto seus pesadelos teimavam em expulsar-lhe da cama.
Naquele momento era só ela. Mas não estava só realmente. Havia aquela imagem pálida à sua frente, cercada por fantasmas a lhe observar com tanto desprezo que chegava a lhe causar náuseas – podia até mesmo sentir seu gosto.
Sentiu pontadas na boca do estômago e instintivamente curvou-se para frente. Seu cérebro tentava enviar a mensagem, mas com persistência ela bloqueava o caminho. Tentação. Sua mente apelava, gritava. Mas ela, suando frio, tampava os ouvidos. O vulto branco suplicava, e ela calava-o com ódio. Resista.
Precisava dormir. Só o sono profundo afugentaria todas aquelas vozes. Mas as pontadas, cada vez mais fortes, insistiam em manter-lhe desperta. Cambaleando, vestiu-se do jeito que pôde e foi até a varanda. Encolheu-se na cadeira tentando controlar o frio que se tornara tão constante nos últimos meses. Tirou um cigarro do bolso e precisou apoiar os cotovelos para conseguir acendê-lo. Tragou profunda e lentamente, na esperança de calar a fome que corroía e manchava sua cor.
As lágrimas caíam livres pelo rosto marcado, umedecendo a pele ressecada. Ultimamente chorar era a única coisa que tinha forças para fazer. E aquela dor absurda não a abandonava nunca... sabia que ela lhe conduziria para o fim.
Involuntariamente sua mão tentou encontrar calor em seu colo. Como viciados a procura da sua morte, os dedos pressionavam a cintura em busca de sinais e corriam para lhe contar: “Isso está horrível, pode fazer melhor!” E ela obedecia.
Ela não via beleza, não tinha vaidades. Sua mente só via números. Precisava encontrar a equação perfeita. Precisava derrubar todos aqueles números, reduzí-los a zero! Talvez depois do zero tivesse um pouco de paz...
Engasgou-se com a fumaça seca do cigarro e automaticamente foi até o banheiro beber um gole d'água da pia. Hábito de menina. Foi aí que sua mente a traiu. Sentiu sua fragilidade e ordenou sua boca a beber dois, três, sete goles desesperados. Ao perceber, em pânico, ela teve ânsias. Com o dedo na garganta, ela tentou expulsar o inimigo. Precisava livrar-se daquilo, não podia permitir que um estranho tomasse conta do seu corpo e fizesse dele o que bem quisesse. O estômago, vazio e fraco, obedeceu em socos.
Sem controle, o único som que seu corpo emitiu foi do baque dos joelhos magros contra o piso.
O barulho despertou a alma cega no quarto ao lado, que levantou com o coração aos pulos. Já sabia o que iria encontrar. Parada na porta do banheiro, ela viu aquele corpo imóvel no chão e então percebeu que não tinha para onde fugir.
Era hora de acordar.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Sua miséria

A cena mais parecia uma pintura. Não por ser bela, muito menos harmoniosa. Era estática, imóvel. Nem mesmo a brisa da pequena janela ao lado ousava intrometer-se naquele campo de inércia absoluta.
Silêncio, prateleiras, mesa, livros, pilhas deles. Parecia-lhe o lugar ideal. Nenhum ser vivo por perto. Nem mesmo ela, a julgar pela aparência pálida e rosto inexpressivo. A página era a mesma há 10 minutos. Aliás, era a mesma todos os dias, por mais de um ano. Não porque ela não gostasse de ler. Isso ela gostava muito. E não também por já ter lido aquele livro tantas vezes. Ela apenas não queria. Não queria movimentar os olhos, nem a mente. Aquele álibi, nem tão seguro, mas único disponível, a mantinha longe, e era isso que importava. Longe para não falar, tão pouco ouvir.
Os raros minutos de mórbida paz davam-lhe coragem para as horas seguintes e a livravam das horas anteriores. Logo, logo, teria que retornar aos murmúrios, aos indicadores disfarçados, às interrupções nervosas ao som dos seus passos.
Retornaria ao mundo do riso de escárnio, lixo e veneno sórdido. Havia tanto vidro que mal ousava pisar, temia trincar. Obrigava-se a encarar. Via podridão em todo lugar, mas muitas vezes pensava se não eram seus olhos. Vergonhas e despudores brotavam das rachaduras daquela estrutura tão velha, muitas vezes pensava se não eram pensamentos seus. Lá fora, ela era sombra, num esforço dolorido de fazer-se nula. Não baixava os olhos, não reduzia o ritmo, não agredia, não gritava. Aliás, nem falava. Em ódio silencioso, sua vida inteira reduzida a um motivo zero. E ainda assim era tanto motivo!
Talvez na extrema força em fazer-se ar, acabava por tornar-se vento.
Não queria ser sentida, não queria ser pensada, não queria ser medida e muito, muito menos notada. Quisera ela não ser vivida.
Mas o rosto ainda esquentava, as pernas ainda tremiam, as mãos ainda suavam e a mente... inferno, como essa mente pensava!
Não calar a mente era a sua miséria, pois só nela ainda insistia e existia.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Desconstrução II

Vendo aquele corpinho magro e encolhido bem na sua frente ficava difícil imaginar que um dia aquela fora a sua morada. Parecia impossível acreditar que por nove longos meses vivera ali, naquele ventre tão pequeno.
Há muito tempo não a via, mas ainda sentia o mesmo frio na barriga ao ter em si depositados aqueles olhos profundos e inquisidores.
A voz baixa, porém firme, que tantas vezes a repreendera, agora, transformada em fraco sussurro, lhe pedia ajuda. Energia, vigor, em segundos desmoronam, escoando em pranto desesperado. A angústia da incompreensão, a mágoa da memória de tantos erros. A ira, seu bom e velho escudo, estava largada num canto, empoeirada, inválida, tão inútil se tornara.
Sob aquela luz branca de fim de tarde, o rosto ainda mais magro, ainda mais pálido, implorava-lhe uma mentira doce.
Deus, como quis essa mentira!
Como quis ver o sol nascer, banhar-se com seus sais, degustar seu tempero, erguer a cabeça e sorrir diante dos olhos claros de inveja. Como quis cores caras na face pura, salto alto sem tropeços, e aquela seda tão fresca, tão suave sobre o corpo.
Tanto quis mas estava ali, o frio percorrendo a espinha, as mãos suadas escondendo o esmalte por fazer. Estava ali esperando o não que lhe devolveria a vida. Tanto que, entre soluços gritados, mal ouviu o sim.
Dava para ver a súplica nos seus olhos, e doía-lhe saber que mais uma vez não faria a sua vontade. Temia o amanhã, temia ouvir o que não queria, mas não podia fugir do sim.
É dura a queda da fantasia. Aqui embaixo tem barulho, tem sujeira, sangue, lágrimas, dor... Mas ela caiu, e não sem apoio, se reergueu. Deixando visível a fraqueza tão manjada, ela levanta a cabeça aos poucos e os olhares se encontram.
Uma vida guerreada perdeu momentaneamente o sentido, pois tudo o que as afastava, agora as aproximava. E aproximava tanto que o mesmo som podia ser ouvido, o mesmo ar era o que enchia seus pulmões e dava forças. Nunca pensou descobrir ali a certeza do que sempre negou. E não havia como fugir, fingir... era um fim sem retrocesso: naquele momento, viram-se uma, e apenas uma seriam, enquanto os olhos estivessem abertos.
Mas os olhos sempre se fecham.
Os momentos sempre acabam.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Desconstrução

Ela rejeitou seu toque...
E sorrindo um sorriso frio ofereceu-lhe a visão amarga da partida. Já se foram verões, mas o gelo insistia em lhe fazer tremer. Ainda esperava o dia em que aquela porta se abriria deixando correr a dor daquele silêncio tão fatal.
E tão necessário foi explicar o que sabia dispensável compreender que se pôs a proferir palavras ao vento em jurados desesperos, deixando-as seguir sem rumo como flechas lançadas sem alvo que perdem a força e caem por terra, infelizes na sua morte vã.
Resta-lhe o ódio como amigo, já que a culpa esvaiu-se tão rápido. E este, rindo-lhe inconseqüente, cava seu túmulo e lhe aponta o destino.
Criada pelo não, ela só soube dizer sim. Guiada pelo afeto, ela fez-se dura e fria. Protegida pelo apego, só restou-lhe a solidão. E então, conformada e amparada, decidiu-se em passos firmes, deixando sempre algumas pegadas.
Deu-se ao luxo do deslize e agora as torres que a cercavam transformam-se em ruínas contrariando toda a sua onipotência. Sem classe, sem charme, ela desvia o lixo e tenta, em vão, fugir das pedras que caem sem sossego e constroem seu muro cruel e intransponível.
Uma palavra mudaria tudo, mas não ousava saber. E enquanto não aprendia, via o mundo em queda brusca, certa de que não teria fim.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

O filho de Ninguém

- O duro mesmo é nunca começar.
Ele falava quase num soco, como se tossisse as palavras. Na verdade, muita gente achava é que ele tossia mesmo. Mas eu sempre entendia.
Aquele momento, eu e ele sentados ali – seu braço marcado apoiado no meu ombro, curvado até sentir os ralos fios já grisalhos da barba roçando no joelho – já acontecera muitas vezes. Eram tantas... mas nunca cansava.
Meu pai não era um homem sábio, não era carinhoso, mas nem severo. Nem divertido, nem dramático. Apenas era.
Chamava-o de pai, não por convenção. Acontece que aquele velho não tinha nome mesmo. Chamavam-no de Ninguém.
- Ô pai, mas como é o seu nome? Fala pra mim! - Perguntei não sei quantas vezes.
- Esquece isso moleque! Sou seu pai, não precisa me chamar.
E não precisava mesmo, ele sempre estava lá.
E foi dias depois, vendo Ninguém no caixão, que eu percebi que precisava começar. Eu era Alguém, filho de Ninguém, e Meu Mundo tinha que saber.
Mas Meu Mundo era de ferro, e só no ferro ele ia se moldar. Lembro disso enquanto acaricio o cano opaco e sujo de pólvora que eu nem mais me animava em limpar.
No meu mundo, minha arma é meu dinheiro, meu respeito, minha amante, meu escudo e minha honra. Minha arma é meu valor.
Não há deus que me diga que aqueles animais são meus irmãos. Que aquela vida era para ser minha e que aquela mão era para me salvar.
Que não me digam que há moral, que há verde, que há ouro; pois eu digo que já cavei, já plantei e já orei.
Que não digam que eu vendo o ódio. Nem conheço tal mistério! Apenas vivo, nem sempre vivo, mas sempre começo.
Na minha mira já vi de tudo, e agora, corpo farto de saber, vejo que nem sequer sei ser.
Ah, Ninguém! Se estava certo, me diz agora: para quem eu sou alguém?
Se a razão é quem governa, se o orgulho só me basta, sou, pois, alguém para mim. Pois para tantos não me interessa... se no Meu Mundo eu não tenho mais Ninguém.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

O lado torto

Me inspiro na solidão de toda noite para criar a companhia de amanhã.
Porque o sol não me faz ver. Chega e grita a alma, silencia o movimento. À noite a mente corre, voa, flutua... viaja só para morrer à luz do dia.
Minha mente é o meu crime. Minha sujeira, minha alegria, luxo e doença. E se disfarça, se maquia, se põe santa e vendida. Se diverte e desmascara, chega ao ponto da loucura, mas sorri e se desfaz.
Minha mente não se culpa, não machuca ou se ressente. E invariavelmente, como uma serpente, sufoca e trai, e retorna majestosa ao seu trono decadente.
Minha mente fala aos gritos, se alimenta do orgulho e expulsa os sentidos. Sente dor por não ter dor, se aquece com o frio e, em choro fingido, embriaga a razão.
E no meio de flores, cores e brisas ela engana e se engana... e domina mais uma vez.
Ela só sabe vencer.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

A sala de espelhos

Ela entrou naquela sala, parecendo por fora tão pequena e escura, mas que por dentro revelava toda a clareza e magnitude que desejava encontrar. Ao ouvir a porta se fechando às suas costas, imediatamente deparou-se com aquela figura tão pequena e robusta, de traços tortuosos e face distorcida.
Aproximou-se e enxergou todo o cinismo e vergonha que conduziam seus atos. Viu a mediocridade naqueles olhos indefinidos, a trapaça desenhando seus lábios, a hipocrisia naqueles curtos braços erguidos, a mentira manipulada entre as mãos. Viu toda a fraqueza definida naquele tronco, a insatisfação enganada no movimento dos quadris. Percebeu a miséria sob aqueles pés inquietos e toda a angústia contida nas pernas tortuosas.
Num misto de desconfiança e medo, ela correu, deparando-se com aquela criatura alta e esguia, assustadoramente disforme. Acima daqueles ombros brutos, ela sentiu a força da loucura. Os grandes olhos seduziam e hipnotizavam. A boca, repleta de certeza, ditava suas ordens. No peito fraco e pequeno ela viu a humilhação; e no tronco imóvel, toda a abnegação. Os joelhos, em carne viva, indicavam a submissão absoluta, enquanto os pés, desproporcionalmente enormes, mostravam toda a dor suportada.
Chorando, ela procurou por ajuda. Encontrou um ombro largo, mas tão alto que era impossível ser alcançado. Encontrou um rosto curvado e viu nele a serena sabedoria, mas aproximou-se demais e percebeu-o dominado pelo orgulho. Suspirou aliviada ao ver dois longos braços estendidos, mas quanto mais perto chegava, mais distante eles lhe pareciam.
Seguiu correndo, encontrando bocas que nunca calavam, gigantes ouvidos surdos, lágrimas fingidas que evaporavam antes de tocar o chão.
Cansada e ofegante, ela cai de joelhos. Entre a decepção e a desilusão, ela desiste de encontrar a saída.
Impossível fugir de dentro de si mesma.

terça-feira, 12 de junho de 2007

Lembranças de nada

Ele estava imóvel. Olhos fixos nas rachaduras do teto. Um casal discutia em algum lugar da rua. Tentava ouvir o que diziam, mas o som da cidade que nunca pára o impedia de compreender o sentido das palavras. Não era uma simples curiosidade de vizinho.
Deitado de costas, seus olhos aflitos tentavam enxergar além das fendas cruelmente desenhadas pelo tempo. O tom de voz daquele homem o fez lembrar de um tempo que, apesar de tão passado, insistia em fazer-se presente.
Instintivamente ele estendeu o braço direito. Tateando o travesseiro, sentiu as mechas finas e encaracoladas que emolduravam aquele rosto angelical, numa sincronia perfeita com o corpo pequeno e branco que repousava em profundo silêncio ao seu lado.
Seu coração dá um salto, como se de repente precisasse lembrá-lo de continuar respirando. O casal continuava a discussão e as vozes se confundiam na sua memória. Reviver aquele momento não era doloroso. Era como aquele bom dia obrigatório de toda a manhã, no caminho do trabalho. Era como o pão com manteiga, como os relatórios da empresa, como a conta do condomínio. Uma lembrança fixa de um ato mecânico, beirando o tédio.
Ele a amou sim, loucura dizer que não. Mas descobriu logo que o mundo era mais cinza por trás dos cenários hollywoodianos. Que todos têm mau-hálito pela manhã e que no inverno todos usam pijamas largos.
Descobriu que o amor tinha todas as caras. Descobriu a cumplicidade, a incerteza, o afeto, o desinteresse, o tesão, a dor de cabeça.
Descobriu que a eternidade não existe...
E no baque da queda descobriu o medo, e do medo tirou a coragem Pois o amor acaba com um homem, mas antes lhe dá forças para acabar com ele. A força no punhal, a coragem na garganta. Não foi difícil ver o fim.
Com o sangue lavando os vestígios, livrou-se da dor. Mas não era a dor da perda, e sim a dor de quem não iria perder. Como o atleta que se angustia ao ver-se chegar em segundo lugar, o orgulho é a sua revanche. A busca pelo amor deixou de ser uma busca, pois não se busca uma ilusão.
E quantos prazeres jogados fora vieram depois... Como o papel que embala o doce – que vai ao lixo com uma parte que também foi sua – aquele corpo ao lado, já frio, cumpria a sua parte na história.
Ao longe ele ouviu a sirene. Sobrepondo-se aos gritos do casal, o som fica mais próximo. Já é possível ver as luzes vermelhas piscando. “Chegaram, enfim”. Ergue-se e vai até a porta. Diante de cinco homens, ele pára só de cuecas, na mão esquerda uma faca manchada de vermelho. Com o olhar cheio de nada, ele dá dois passos em direção ao cano mais próximo, aponta a faca em tom ameaçador. O movimento brusco alerta o dedo no gatilho, que dispara na hora.
Ainda de pé, ele vê seu corpo pintando-se com uma tinta quente e viscosa. Antes das luzes desaparecerem por completo, um pensamento: “Eu sinto”.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Num futuro não muito distante...

Foi num dia comum desses que a gente tem sempre. Eu andava pela calçada dando um salto a cada dois passos mais ou menos. Seguia desviando os buracos bem desse jeito, como fazia todos os dias. Mas naquele dia eu caí. E logo que caí olhei para o lado e compreendi: havia tropeçado na perna de um garoto que dormia ali. Como ele não se movia, me irritei e cutuquei-o com a ponta do guarda-chuva. Ele acorda meio desorientado e eu, ainda no chão, grito:
- Você invadiu meu espaço! Essa parte é minha, tira essa perna para lá.
- Não senhora, paguei por esse canto aqui, tenho 1m23 de altura, posso esticar minha perna aqui.
- Deixe-me ver a autorização.
- Autorização?
- Ihhh já vi que não tem. Quem te vendeu esse espaço?
- Um moço que anda sempre por aqui. Por quê?
- Ele te cobrou quanto?
- Pago 5 caixas de doce no fim do dia.
- E isso equivale a quanto?
- 1 sanduíche de presunto.
- E você come o que agora?
- Como 1 sanduíche de presunto, só que é de dois dias. Antes eu comia de um dia.
Considerei por um momento.
- Ah bom, assim tá certo. Mas onde está sua demarcação?
- Aqui ó: vem aqui, até aqui e faz esse quadrado. E aqui eu coloco a cabeça.
- E não dói?
- Só no início, mas acho que amaciei a pedra um pouco. O fato é que minha cabeça cabe direitinho nesse espaço e é por isso que minha perna fica aí.
- No meu espaço!
- Senhora eu já disse que paguei por isso!
- Pois eu tenho autorização para passar nessa calçada e meu contrato diz que esse espaço é meu. Provavelmente você está sendo roubado. Não tem autorização pra ficar aí não é?
- Tenho não senhora, mas não conta pra ninguém... se eu comprar com autorização vou ter que encarar sanduíche de 4 dias... sem presunto.
- O que é certo é certo. Vou te processar.
- Ah é?? Então pode processar, eu chamo meu advogado.
- Pois bem. Veremos.
Levantei e sacudi a poeira da calça. Ergui a cabeça e segui em frente, em tempo de ver o garoto ligando para o seu advogado do celular naquele exato momento.

Humpf. Crianças.