terça-feira, 10 de julho de 2007

Todas as noites

Pontualmente a porta do edifício se abriu e a rua ganhou novas cores. Na outra calçada ele acompanhava com os olhos, fingindo desinteresse, seus movimentos curtos e rápidos. O vento gelado balançava os cabelos lisos cor de fogo parecendo se divertir. De longe ele sentia seu perfume.
Passou a acompanhá-la à distância, mesmo sabendo que não seria notado: ela seguia a passos firmes, jamais olhava para o lado.

Em poucos minutos ela chegava ao seu destino. O mesmo de todas as noites. Não temia mais o perigo das ruas escuras, sabia que estava protegida. Em silêncio, fazia seu percurso rápido, acompanhada pelo calor do seu estranho vigia.

Ele entrou no bar pela porta da frente e sentou em uma mesa afastada da multidão. A mesma de todas as noites. Pediu uma cerveja sentindo no peito a mesma ansiedade de sempre. Acendeu um cigarro e ficou olhando para o palco vazio. A espera era curta, mas trazia o peso de uma eternidade.

Um toque na campainha e a porta dos fundos se abriu. Ela entrou apressada, já tirando o casaco e trocando os brincos. Apesar do frio, lá dentro sempre era quente demais.
Vestiu-se com a rapidez da prática. Conferiu a meia-calça, ajeitou os seios no top rendado. Uma olhadinha no espelho e um sorriso: estava pronta para ele.
Parou na entrada do palco e confirmou sua presença segura lá no fundo, como em todas as noites. Respirou fundo, acenou para o DJ.

A espera chegava ao fim, pôde ver seu vulto no canto esquerdo do palco. A música começou. Seus dentes brilharam num sorriso de quem mata uma saudade.
Ela surgiu devagar. Sempre tão ela!
Gostava de imaginar que ela dançava para ele. No movimento das suas curvas, ele sentia seu olhar chamando. Podia ficar horas ali, aquele momento se bastava.
Queria até sentar mais perto, talvez no lugar daqueles velhos metidos em seus ternos finos, para sentir seus toques. Mas seu ciúme era tanto que não aceitava dividi-la consigo mesmo. Ficava ali, respirando seus delírios.

A casa estava cheia, como sempre. O desejo, pago em notas amassadas, lhe dizia que aquele era o seu lugar. Mas era para ele que ela dançava. Sua mão, percorrendo o próprio corpo, era dele.
Queria até que ele sentasse mais perto. Queria tocá-lo ao invés de respirar fumaça de charutos caros, mas era a distância do corpo que o tornava tão seu.
As luzes dos holofotes não conseguiam ofuscar o brilho daquele sorriso na escuridão. E era só por isso ela estava lá.

As horas voavam, mas ele não ligava mais. No tempo certo, ele se levantou e saiu devagar. O frio cortante não conseguiu esfriar o seu corpo.
Encostado no muro ele aguardou a porta se abrir. Lá estava ela. Novamente com pressa, sem olhar para o lado, seguiu pela calçada no ritmo do seu salto firme contra as pedras imundas.
Ele foi atrás do seu rastro, respirando fundo para guardar seu cheiro.

Ela entrou no vestiário cantando baixinho. Alguém oferece uma carona. Não era necessário, tinha companhia. Vestiu-se e, antes de abrir a porta, sorriu para si mesma. Baixou a cabeça e entrou na madrugada vazia. Lá estava ele à sua espera. Como em todas as noites.
Seguiu rápido pela calçada no ritmo do seu coração.

Poucas quadras adiante, ele atravessou a rua para vê-la entrar no edifício. Boa noite meu amor, murmurou para ninguém.

Ao fechar a porta, ela sorri mais uma vez. Até amanhã, meu bem.

3 comentários:

Maikel De Abreu disse...

ah boemia...rende histórias hein?

Unknown disse...

Muito bonita a descrição de amor platônico dos dias atuais! Hehehe
Desejos, sentimentos e conceitos misturam-se, sem abalar a sintonia secreta entre os personagens.
Bjs

Adele Corners disse...

Ah meu bem, esse é o meu preferido até agora!

Mil bjs!