terça-feira, 24 de julho de 2007

Uma humilde visita

Tenho um amigo chamado Franz que apareceu aqui e pediu se podia publicar um texto. Eu deixei, para lhe dar uma forcinha. Segue aí:

O Brasão da Cidade
No início tudo estava numa ordem razoável na construção da Torre de Babel; talvez a ordem fosse até excessiva, pensava-se demais em sinalizações, intérpretes, alojamentos de trabalhadores e vias de comunicação, como se à frente houvesse séculos de livres possibilidades de trabalho. A opinião reinante na época chegava ao ponto de que não se podia trabalhar com lentidão suficiente, ela não precisava ser muito enfatizada para que se recuasse assustado ante o pensamento de assentar os alicerces. Argumentava-se da seguinte maneira: o essencial do empreendimento todo é a idéia de construir uma torre que alcance o céu. Ao lado dela tudo o mais é secundário. Uma vez apreendida na sua grandeza essa idéia não pode mais desaparecer; enquanto existirem homens, existirá também o forte desejo de construir a torre até o fim. Mas nesse sentido não é preciso se preocupar com o futuro; pelo contrário, o conhecimento da humanidade aumenta, a arquitetura fez e continuará fazendo mais progressos, um trabalho para o qual necessitamos de um ano será dentro de cem anos realizado, talvez em meio e além disso melhor, com mais consistência. Por que então esforçar-se ainda hoje até o limite das energias? Isso só teria sentido se fosse possível construir a torre no espaço de uma geração. Mas não se pode de modo algum esperar por isso. Era preferível pensar que a geração seguinte, com o seu saber aperfeiçoado, achará mau o trabalho da geração precedente e arrasará o que foi construído, para começar de novo. Esses pensamentos tolhiam as energias e, mais do que com a construção da torre, as pessoas se preocupavam com a construção da cidade dos trabalhadores. Cada nacionalidade queria ter o alojamento mais bonito, resultaram daí disputas que evoluíram até lutas sangrentas. Essas lutas não cessaram mais, para os líderes elas foram um novo argumento no sentido de que, por falta da concentração necessária, a torre deveria ser construída muito devagar ou de preferência só depois do armistício geral. As pessoas porém não ocupavam o tempo apenas com batalhas, nos intervalos embelezava-se a cidade, o que entretanto provocava nova inveja e novas lutas. Assim passou o tempo da primeira geração, mas nenhuma das seguintes foi diferente, sem interrupção só se intensificava a destreza e com ela a belicosidade. A isso se acrescentou que já a segunda ou terceira geração reconheceu o sem-sentido da construção da torre do céu, mas já estavam todos muito ligados entre si para abandonarem a cidade. Tudo o que nela surgiu de lendas e canções está repleto de nostalgia pelo dia profetizado em que a cidade será destroçada por um punho gigantesco com cinco golpes em rápida sucessão. Por isso a cidade também tem um punho no seu brasão.
Franz Kafka
Traduções de Modesto Carone (direto do alemão)

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Tiro certo

Embalado pelo primeiro tapa no bumbum, o jovem casal chorou sorrindo. E com o mesmo sorriso salgado o pai pôde ouvir os primeiros sons daquele que seria a sua parte no mundo. Sua chance de glória, a vitória que esconderia sua história.
Aquele pequeno ser era a sua grande desculpa. O tapete persa a esconder sua sujeira.
Depois de 22 anos ouvindo essa história, o garoto ainda tentava ligar os pontos. Sabia, mas não aceitava a bola de ferro que tanto lhe pesava os passos. Dia-a-dia tentava apagar com álcool a tinta das linhas há tanto traçadas, mas tudo o que conseguia era fazer um borrão. E dia-a-dia a mancha aumentava tomando formas cada vez mais difíceis de modelar.
Invejava a infelicidade dos poetas, pois dela faziam rima, e por ela alguém sorria... amava. A sua era real. Não tinha graça, não tinha encanto. Ninguém se recostava numa poltrona macia para sonhar com as suas lamúrias.
E se fosse só por falta de talento, ainda assim o seu lamento poderia confortar. Mas aquela dor era ácida, fantasiada de ódio pulsante, lhe fervia as têmporas e escurecia seu mundo cada vez mais.
E não tinha conserto, não tinha palavras para a falta de ser. Pois mesmo sem ver ele sabia que era dele a desgraça. Uma culpa cultivada na infância que cresceu forte e criou raízes. Planta regada nos templos, cortejada pelos mantos, enobrecida pelo ouro de uma conquista sangrenta. Não sabia e nem poderia arrancar do corpo aquela imagem voraz, marcada como tatuagem, que lhe indicava os caminhos de volta para a casa que sempre deveria ser sua.
Mas ele não entendia as coordenadas e insistia em se perder. E perdido estava ainda mais em casa, mesmo que tantas vezes esse teto tenha tentado se romper.
Negava o luxo, apagava o fogo, destruía as porcelanas decoradas com suas iniciais. Pois era no chão duro e frio que conseguia ouvir seu coração bater. Era na embriaguez que sentia o sangue correr.
Não desperdiçaria mais lágrimas pelas pérolas que se espalhavam no chão. Não colecionaria rugas pelas somas intermináveis. Não puxaria o gatilho por aquele que não soube recomeçar.
Choraria agora pelos amores perdidos. Envelheceria sim, mas pela doença da crença.
A última bala falaria por si.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Vinho barato

Eu fico aqui parada sempre nesse lugar, nessa mesma posição. Fico na ilusão de que, se tentar repetir o momento, vou poder mudar a história. Ou pelo menos entender melhor.
Mas vejo sempre a mesma cena, ouço sempre as mesmas palavras, e a compreensão me escapa mais uma vez.
Se eu tivesse fotografado seu rosto naquele instante, talvez tivesse congelado o que seus olhos tentaram me dizer. E talvez as frases tivessem ficado marcadas para que eu te jogasse na cara e te fizesse ver que não tinha mais como esconder.
Porque agora estou aqui. Só eu e essas minhas verdades ralas e inconstantes, turvas afogadas no meu vinho de má qualidade. Em taça de cristal, ele pensa que engana. Mas sua cor e cheiro me fazem rir de tamanha pretensão.
Como ele, também tentei ser mais forte, ser original. Como ele, tentei ser madura e voraz. Tentei ser cara e confiável, sexy e soberana. Mas como ele, tropeço nas minhas falhas e pinto sua boca, entregando minha fraqueza vulgar e insólita. E aí tu me bebe fria, em copo de plástico, para provar que não mereço nada melhor. E do teu lado, já espera a aspirina, santa amiga dessas noites cheias de restos.
Tentei também ser aspirina. Tão fútil tentativa... me desfiz em pó no primeiro sopro. E agora me recolho e me monto, tentando achar uma forma que quebre teu mundo. Sem bases, sem fórmulas, a única que me resta é a verdadeira. Mas esta, como o vinho fingido, foge pelas mãos e mancha a pele, só para avisar que não a posso ter, mas que estará sempre lá.
Esse chão sempre tão firme, racha-se inteiro em pontas afiadas. Ergo os pés, mas ele ataca com pressa. Me causa tonturas, mas não me rendo assim tão fácil.
Tento escrever e a caneta falha. A música está tão alta! Uma batida desajeitada, uma voz desafinada, ela faz as janelas tremerem e dá o recado: não te deixaremos pensar.
Vejo que esse circo dos horrores é um complô, e dou gargalhadas amargas no faz-de-conta de que ainda tenho as rédeas. Mas eles sabem que não tenho nada a não ser uma mente insana que desenha luares perfeitos e sorrisos quentes.
Eles sabem que não tenho nada. Nem a mim... Nem a ti.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Todas as noites

Pontualmente a porta do edifício se abriu e a rua ganhou novas cores. Na outra calçada ele acompanhava com os olhos, fingindo desinteresse, seus movimentos curtos e rápidos. O vento gelado balançava os cabelos lisos cor de fogo parecendo se divertir. De longe ele sentia seu perfume.
Passou a acompanhá-la à distância, mesmo sabendo que não seria notado: ela seguia a passos firmes, jamais olhava para o lado.

Em poucos minutos ela chegava ao seu destino. O mesmo de todas as noites. Não temia mais o perigo das ruas escuras, sabia que estava protegida. Em silêncio, fazia seu percurso rápido, acompanhada pelo calor do seu estranho vigia.

Ele entrou no bar pela porta da frente e sentou em uma mesa afastada da multidão. A mesma de todas as noites. Pediu uma cerveja sentindo no peito a mesma ansiedade de sempre. Acendeu um cigarro e ficou olhando para o palco vazio. A espera era curta, mas trazia o peso de uma eternidade.

Um toque na campainha e a porta dos fundos se abriu. Ela entrou apressada, já tirando o casaco e trocando os brincos. Apesar do frio, lá dentro sempre era quente demais.
Vestiu-se com a rapidez da prática. Conferiu a meia-calça, ajeitou os seios no top rendado. Uma olhadinha no espelho e um sorriso: estava pronta para ele.
Parou na entrada do palco e confirmou sua presença segura lá no fundo, como em todas as noites. Respirou fundo, acenou para o DJ.

A espera chegava ao fim, pôde ver seu vulto no canto esquerdo do palco. A música começou. Seus dentes brilharam num sorriso de quem mata uma saudade.
Ela surgiu devagar. Sempre tão ela!
Gostava de imaginar que ela dançava para ele. No movimento das suas curvas, ele sentia seu olhar chamando. Podia ficar horas ali, aquele momento se bastava.
Queria até sentar mais perto, talvez no lugar daqueles velhos metidos em seus ternos finos, para sentir seus toques. Mas seu ciúme era tanto que não aceitava dividi-la consigo mesmo. Ficava ali, respirando seus delírios.

A casa estava cheia, como sempre. O desejo, pago em notas amassadas, lhe dizia que aquele era o seu lugar. Mas era para ele que ela dançava. Sua mão, percorrendo o próprio corpo, era dele.
Queria até que ele sentasse mais perto. Queria tocá-lo ao invés de respirar fumaça de charutos caros, mas era a distância do corpo que o tornava tão seu.
As luzes dos holofotes não conseguiam ofuscar o brilho daquele sorriso na escuridão. E era só por isso ela estava lá.

As horas voavam, mas ele não ligava mais. No tempo certo, ele se levantou e saiu devagar. O frio cortante não conseguiu esfriar o seu corpo.
Encostado no muro ele aguardou a porta se abrir. Lá estava ela. Novamente com pressa, sem olhar para o lado, seguiu pela calçada no ritmo do seu salto firme contra as pedras imundas.
Ele foi atrás do seu rastro, respirando fundo para guardar seu cheiro.

Ela entrou no vestiário cantando baixinho. Alguém oferece uma carona. Não era necessário, tinha companhia. Vestiu-se e, antes de abrir a porta, sorriu para si mesma. Baixou a cabeça e entrou na madrugada vazia. Lá estava ele à sua espera. Como em todas as noites.
Seguiu rápido pela calçada no ritmo do seu coração.

Poucas quadras adiante, ele atravessou a rua para vê-la entrar no edifício. Boa noite meu amor, murmurou para ninguém.

Ao fechar a porta, ela sorri mais uma vez. Até amanhã, meu bem.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Uma última chance

O ambiente estava um pouco escuro, é verdade. Mas seus olhos se acostumavam rápido com a penumbra. A fraca luz da lua que espiava tímida pela janela até a favorecia. Sorriu um pouco com esse pensamento, mas o triste movimento dos lábios logo se desfez quando seus olhos cruzaram com aquela imagem refletida no espelho.
Ela se aproximou devagar, temendo que os estalos do chão de madeira acordassem alguém. Era muito tarde e a paz daquela casa a tomava de inveja. Torturava-se ao imaginar que todos dormiam tão serenos enquanto seus pesadelos teimavam em expulsar-lhe da cama.
Naquele momento era só ela. Mas não estava só realmente. Havia aquela imagem pálida à sua frente, cercada por fantasmas a lhe observar com tanto desprezo que chegava a lhe causar náuseas – podia até mesmo sentir seu gosto.
Sentiu pontadas na boca do estômago e instintivamente curvou-se para frente. Seu cérebro tentava enviar a mensagem, mas com persistência ela bloqueava o caminho. Tentação. Sua mente apelava, gritava. Mas ela, suando frio, tampava os ouvidos. O vulto branco suplicava, e ela calava-o com ódio. Resista.
Precisava dormir. Só o sono profundo afugentaria todas aquelas vozes. Mas as pontadas, cada vez mais fortes, insistiam em manter-lhe desperta. Cambaleando, vestiu-se do jeito que pôde e foi até a varanda. Encolheu-se na cadeira tentando controlar o frio que se tornara tão constante nos últimos meses. Tirou um cigarro do bolso e precisou apoiar os cotovelos para conseguir acendê-lo. Tragou profunda e lentamente, na esperança de calar a fome que corroía e manchava sua cor.
As lágrimas caíam livres pelo rosto marcado, umedecendo a pele ressecada. Ultimamente chorar era a única coisa que tinha forças para fazer. E aquela dor absurda não a abandonava nunca... sabia que ela lhe conduziria para o fim.
Involuntariamente sua mão tentou encontrar calor em seu colo. Como viciados a procura da sua morte, os dedos pressionavam a cintura em busca de sinais e corriam para lhe contar: “Isso está horrível, pode fazer melhor!” E ela obedecia.
Ela não via beleza, não tinha vaidades. Sua mente só via números. Precisava encontrar a equação perfeita. Precisava derrubar todos aqueles números, reduzí-los a zero! Talvez depois do zero tivesse um pouco de paz...
Engasgou-se com a fumaça seca do cigarro e automaticamente foi até o banheiro beber um gole d'água da pia. Hábito de menina. Foi aí que sua mente a traiu. Sentiu sua fragilidade e ordenou sua boca a beber dois, três, sete goles desesperados. Ao perceber, em pânico, ela teve ânsias. Com o dedo na garganta, ela tentou expulsar o inimigo. Precisava livrar-se daquilo, não podia permitir que um estranho tomasse conta do seu corpo e fizesse dele o que bem quisesse. O estômago, vazio e fraco, obedeceu em socos.
Sem controle, o único som que seu corpo emitiu foi do baque dos joelhos magros contra o piso.
O barulho despertou a alma cega no quarto ao lado, que levantou com o coração aos pulos. Já sabia o que iria encontrar. Parada na porta do banheiro, ela viu aquele corpo imóvel no chão e então percebeu que não tinha para onde fugir.
Era hora de acordar.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Sua miséria

A cena mais parecia uma pintura. Não por ser bela, muito menos harmoniosa. Era estática, imóvel. Nem mesmo a brisa da pequena janela ao lado ousava intrometer-se naquele campo de inércia absoluta.
Silêncio, prateleiras, mesa, livros, pilhas deles. Parecia-lhe o lugar ideal. Nenhum ser vivo por perto. Nem mesmo ela, a julgar pela aparência pálida e rosto inexpressivo. A página era a mesma há 10 minutos. Aliás, era a mesma todos os dias, por mais de um ano. Não porque ela não gostasse de ler. Isso ela gostava muito. E não também por já ter lido aquele livro tantas vezes. Ela apenas não queria. Não queria movimentar os olhos, nem a mente. Aquele álibi, nem tão seguro, mas único disponível, a mantinha longe, e era isso que importava. Longe para não falar, tão pouco ouvir.
Os raros minutos de mórbida paz davam-lhe coragem para as horas seguintes e a livravam das horas anteriores. Logo, logo, teria que retornar aos murmúrios, aos indicadores disfarçados, às interrupções nervosas ao som dos seus passos.
Retornaria ao mundo do riso de escárnio, lixo e veneno sórdido. Havia tanto vidro que mal ousava pisar, temia trincar. Obrigava-se a encarar. Via podridão em todo lugar, mas muitas vezes pensava se não eram seus olhos. Vergonhas e despudores brotavam das rachaduras daquela estrutura tão velha, muitas vezes pensava se não eram pensamentos seus. Lá fora, ela era sombra, num esforço dolorido de fazer-se nula. Não baixava os olhos, não reduzia o ritmo, não agredia, não gritava. Aliás, nem falava. Em ódio silencioso, sua vida inteira reduzida a um motivo zero. E ainda assim era tanto motivo!
Talvez na extrema força em fazer-se ar, acabava por tornar-se vento.
Não queria ser sentida, não queria ser pensada, não queria ser medida e muito, muito menos notada. Quisera ela não ser vivida.
Mas o rosto ainda esquentava, as pernas ainda tremiam, as mãos ainda suavam e a mente... inferno, como essa mente pensava!
Não calar a mente era a sua miséria, pois só nela ainda insistia e existia.