terça-feira, 12 de junho de 2007

Lembranças de nada

Ele estava imóvel. Olhos fixos nas rachaduras do teto. Um casal discutia em algum lugar da rua. Tentava ouvir o que diziam, mas o som da cidade que nunca pára o impedia de compreender o sentido das palavras. Não era uma simples curiosidade de vizinho.
Deitado de costas, seus olhos aflitos tentavam enxergar além das fendas cruelmente desenhadas pelo tempo. O tom de voz daquele homem o fez lembrar de um tempo que, apesar de tão passado, insistia em fazer-se presente.
Instintivamente ele estendeu o braço direito. Tateando o travesseiro, sentiu as mechas finas e encaracoladas que emolduravam aquele rosto angelical, numa sincronia perfeita com o corpo pequeno e branco que repousava em profundo silêncio ao seu lado.
Seu coração dá um salto, como se de repente precisasse lembrá-lo de continuar respirando. O casal continuava a discussão e as vozes se confundiam na sua memória. Reviver aquele momento não era doloroso. Era como aquele bom dia obrigatório de toda a manhã, no caminho do trabalho. Era como o pão com manteiga, como os relatórios da empresa, como a conta do condomínio. Uma lembrança fixa de um ato mecânico, beirando o tédio.
Ele a amou sim, loucura dizer que não. Mas descobriu logo que o mundo era mais cinza por trás dos cenários hollywoodianos. Que todos têm mau-hálito pela manhã e que no inverno todos usam pijamas largos.
Descobriu que o amor tinha todas as caras. Descobriu a cumplicidade, a incerteza, o afeto, o desinteresse, o tesão, a dor de cabeça.
Descobriu que a eternidade não existe...
E no baque da queda descobriu o medo, e do medo tirou a coragem Pois o amor acaba com um homem, mas antes lhe dá forças para acabar com ele. A força no punhal, a coragem na garganta. Não foi difícil ver o fim.
Com o sangue lavando os vestígios, livrou-se da dor. Mas não era a dor da perda, e sim a dor de quem não iria perder. Como o atleta que se angustia ao ver-se chegar em segundo lugar, o orgulho é a sua revanche. A busca pelo amor deixou de ser uma busca, pois não se busca uma ilusão.
E quantos prazeres jogados fora vieram depois... Como o papel que embala o doce – que vai ao lixo com uma parte que também foi sua – aquele corpo ao lado, já frio, cumpria a sua parte na história.
Ao longe ele ouviu a sirene. Sobrepondo-se aos gritos do casal, o som fica mais próximo. Já é possível ver as luzes vermelhas piscando. “Chegaram, enfim”. Ergue-se e vai até a porta. Diante de cinco homens, ele pára só de cuecas, na mão esquerda uma faca manchada de vermelho. Com o olhar cheio de nada, ele dá dois passos em direção ao cano mais próximo, aponta a faca em tom ameaçador. O movimento brusco alerta o dedo no gatilho, que dispara na hora.
Ainda de pé, ele vê seu corpo pintando-se com uma tinta quente e viscosa. Antes das luzes desaparecerem por completo, um pensamento: “Eu sinto”.

3 comentários:

Adele Corners disse...

Arrá!!!! Mentirosa......

Te peguei!



Só uma coisa: esse txt me lembrou alguém... um ex-colega....

Vivian Fiorio disse...

ahhhhhhhhhhhhhh bela lembrança... Aliás, doce e bela lembrança huahauahaua

Unknown disse...

Nossa, que punk, hã?! Andou assistindo Assassinos por Natureza de novo, né?
Beijos