terça-feira, 14 de agosto de 2007

Tudo o que não tivemos

Os dedos percorriam a superfície lisa, mas sem curvas, da velha estante da sala. Uma fina camada de pó tornava-se perceptível somente com o toque. Nada fica limpo o tempo todo. Os olhos pararam diante dos velhos porta-retratos e os lábios ensaiaram um sorriso meio torto. As velhas fotos estavam lá há anos. Talvez por descuido, talvez por não haver outras para substituir... Mas realmente acreditava ser por estarem ali há tanto tempo que nem sequer eram mais notadas. Viraram partes de um cenário, tão fixas e eternas quanto as manchas amareladas dos quadros retirados da parede na última mudança.
Isso lhe trazia um pouco de conforto. Mas não o conforto esperado, no real sentido da palavra. Este não acreditava sentir mais naquele lugar. Era o conforto amargo de se sentir como sempre se sentira.
Afinal, o que fez tudo aquilo deixar de ser tão familiar? Sabia a resposta, sempre soube, mas gostava de se fazer a mesma pergunta a cada vez. Talvez uma rala esperança de mudar o resultado. Talvez querendo acreditar que o tempo a faria pensar diferente...
Mas sabia sim. O que deixa de ser familiar é o que nunca foi. Onde nunca se sentira verdadeiramente parte, jamais conseguiria ser. Nem as mais doces memórias, nem as mais agradáveis lembranças teriam a força de mudar o que nunca existiu.
Aquilo nunca fora seu, então nunca será. E nunca tendo sido, como sentiria diferente?
A verdade é que gostava de fantasiar que um dia estaria ali, diante da mobília velha com ar imperial, e sorriria um sorriso puro e sincero, respirando aquele ar com perfume de lavanda... pensando em como era bom estar em casa novamente.
Ouviria aquela voz de sempre, sentiria o calor do sol que refletia no tapete macio todas as tardes. E aquilo seria seu.
Mas estava diante das mesmas fotos de tantos anos, os traços tão mudados mas ainda tão presentes naquelas imagens meio apagadas. E o sorriso virava um aperto ao ver que ainda era o mesmo da menina enfeitada com laços no cabelo. Os pequenos olhos de criança que deveriam ter olhado para a câmera estavam tão perdidos como agora.
Ninguém viu nesses anos todos, mas nem teriam como perceber. Lembrava nitidamente daquele dia. Lembrava do que estava pensando naquele exato momento que um flash tentou mascarar.
Mais sombrio do que esta lembrança era saber que os pensamentos também se haviam congelado. Mais de 20 anos se passaram e os sonhos ainda eram os mesmos. E naquele momento viu que sempre seriam, pois realizá-los era algo que já não fazia mais parte dos seus planos.
Continuou a passar o dedo por entre os desenhos da madeira envernizada. O tempo agora teria que ser seu amigo, logo estaria na sua casa sem retratos.

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