terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

A preferida

Por trás da fumaça branca dava pra ver o cinza dos seus olhos opacos. Os lábios um pouco sorrindo tinham um leve brilho cor de boca. A expressão que dizia tudo contrastava com as pernas jogadas em calça jeans rasgada. Não era estilo, era excesso de uso.
Ela se recostou na cadeira, fazendo a madeira velha ranger. Ao seu redor, poucos móveis, e todos diziam nada além do que deviam dizer. Era apenas mobília.
E era assim, mais linda, sonolenta, preguiçosa, que ela arrastava algumas palavras, entrecortadas pelo riso e uma tragada volta e meia.
No chão, um copo quebrado deixava escorrer o líquido que penetrava nas frestas do chão e espalhava-se quase sumindo. Pontas das meias gastas mostravam um pedaço do calcanhar de tanto rastejar. Ela não erguia-se para andar...
E num momento breve de quase susto levanta e arremessa a cadeira pela janela. Escolheu a fechada. Gostava do som do vidro quebrando e logo mais não teria mais vidros para quebrar.
Rindo, sentou-se no chão e juntou os cacos. Com uma ponta afiada, cortou um pedaço do cabelo e estendeu em minha direção.
- Tome, agora me tens por completo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Retalhos

O tempo passava e ele já não tolerava mais ver sua imagem refletida na janela à sua frente. Não importava para onde olhasse, sempre acabava fitando aquele rosto sem vida, pele ressecada do frio, olheiras permanentes, o cabelo parecia imundo, apesar de ter lavado naquela mesma manhã. Não suportava mais ver aquela combinação de camisa xadrez e calça jeans desbotada.
Ao analisar aquela figura magra, sentada sem postura nenhuma, ocorria-lhe a figura de um adolescente. Sim, era isso que o incomodava tanto. Parecia exatamente com um garoto de dezesseis anos, revoltado, na espera da sala do diretor, chamado mais uma vez por um ato de indisciplina na escola.
Perdido naqueles pensamentos sem qualquer finalidade, ele nem mais percebia o corre-corre dos médicos e enfermeiras à sua frente. Algumas horas atrás, estava mais para um repórter de fofocas, correndo desesperado atrás de cada indivíduo de avental branco que surgisse no corredor. Mas agora estava inerte. Seu corpo já não se mexia há algum tempo e ele chegou a pensar que poderia ter solidificado seus pés no chão.
Mais algumas pessoas passaram por ele, enquanto sua mente retrocedia lembrando das músicas que tanto ouvira na sua juventude. As letras eram sempre um reflexo do que ele sentia na época. Por isso, cada música marca uma fase de sua vida. Como um hino. Um hino em memória a um período confuso, crítico e totalmente improdutivo da vida de um garoto de classe média que não queria absolutamente nada com coisa nenhuma.
E foi essa cena que Dr. S. viu quando entrou na ala da maternidade da Santa Casa. Um homem em torno dos cinqüenta, cabelos grisalhos nas têmporas, algumas linhas marcadas no rosto pelas preocupações da profissão. No entanto, a imagem geral era muito jovial. Corpo em forma, olhos de um cinza-claro que lembravam muito bem os dias nublados de inverno. Impecável no seu jaleco, ele foi se aproximando do homem que estava sentado desajeitadamente no banco do corredor, recusando a hospitalidade da casa que oferecia uma ampla sala de espera logo adiante.
- Com a sua licença Sr. J., sou o médico responsável pela internação da sua esposa.
Aguardou uns instantes para que o jovem à sua frente voltasse à Terra.
- Aham... – respondeu J. ainda distraído.

Como nuvem disperso e transformo... em formas que longe vão...

- O médico limpou a garganta e se movimentou desconfortável, tentando reaver a postura.
Devo informar-lhe que ela está passando bem no momento. Dentro de algumas horas o senhor poderá até mesmo fazer-lhe uma visita.

Tão longe posso chegar... não há potes de ouro no fim...

- Assim, acho que seria bom o senhor aproveitar o momento para comer alguma coisa, reanimar o corpo. O nervosismo provoca muito cansaço físico. – prosseguiu o médico.
- Tudo bem... – foi o que conseguiu pronunciar... Agora não fazia mais diferença.

Fica na memória... não morre... se faz fumaça e paira no ar...

terça-feira, 23 de outubro de 2007

O vento leva

Bom te ver abrindo os olhos, percebendo as cores... Tracei um caminho e te vejo agora percorrendo-o aos poucos, um tanto temerosa, um tanto curiosa. Não pisa mais nas minhas pegadas, já faz as próprias marcas, querendo mostrar que esse caminho pode ser o teu também.
É bom te ver perder a penugem, questionar os sonhos... Sei que é doloroso, não há outra fórmula. Se houvesse, certamente já teria te mostrado.
Simplesmente tu abre a porta e olha para trás. Não sei se espera que eu peça para ficar, mas apenas fico lá te observando. Não vou correr e segurar tuas pernas. Pelo contrário, posso até chegar ao parapeito e te dar um empurrão. Assim voarás mais alto... mesmo que eu saiba que é difícil querer ficar no chão depois que se aprende a voar.
Pois agora fica aquele vazio estranho debaixo das minhas asas, não posso mais te segurar.
Quero, e quero sempre que voe, que sinta o vento contra o rosto e perceba que pode vencê-lo fácil. Ignore meu olhar perdido, meu sorriso morto. Ignore se eu te parecer tão longe quando olhar lá do alto e minha imagem diminuir até sumir. Faço isso para que vire para frente e veja o mundo que te espera. E espero e quero que esse mundo seja lindo e imenso, tanto que mal encontre tempo para conhecê-lo totalmente. E que o medo de cair passe logo, pois quando aprender a dominar teu vôo, o percurso ficará tranquilo e só aí compreenderás... só então saberás quando parar. Pois sempre poderá recomeçar tão logo ouça os ventos te chamarem.

O travesseiro perdeu teu cheiro, ou será que teu cheiro não é mais o mesmo?

domingo, 30 de setembro de 2007

Leve o tempo

Abra os olhos e não me procure.
Seja para quem for, seja para ninguém. Não estarei aqui quando acordar...
Não sei onde posso estar, mas é longe, longe demais de tudo, longe demais de mim.
Onde estou há uma brisa fresca. Não está chovendo, mas sinto gotas de água limpa caindo no meu rosto.
Sob os pés, chão suave e macio, posso estar flutuando...

Aqui o ar é puro e posso respirar profundo sem o peso grotesco e pegajoso que me cola à pele.
Aqui estou limpa e meu corpo sente a luz.

Abra os olhos e sinta o dia chegar. Apenas por saber que ele logo se vai, mas que mesmo assim deseja ver teus olhos mais essa vez.
Toque os lençóis e sinta como é leve... E leve solta, leve folha que tomada pelo vento como a brincar jamais toca o chão.

Leve o tempo que for, deixe-se levar...

No fim do dia, posso estar de volta depois que seus olhos fecharem.
Mas pela manhã, ao acordar, não espere me ver lá.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Instante eterno

As lágrimas estão lá o tempo todo, apenas aguardando um motivo para cair...
Talvez porque a dor seja sempre mais forte do que os momentos de felicidade tão breves. Estes de vez em quando até enganam. Aparecem de repente afastando qualquer nuvem e tão rápido como surgem, lá se vão em poucos instantes, deixando apenas um leve gosto na boca.
Ilusória comparsa... só se percebe a luz quando há escuridão.
Ainda que não se deseje alcançá-la, mesmo assim não se tenta evitá-la. E a todo momento ela se percebe naquele lugar: à sua frente, um imenso vazio; às suas costas, chão a perder de vista. "Junto ao precipício só vai quem vai além". É sua mente cantarolando em tom ameaçador e convidativo.
E de fato ela sempre vai além. E agora é isso que resta, uma tentativa vã de afogar o soluço e a sensação de que não se sabe o por quê. O que se sabe apenas é que, por mais que se vá, sempre haverão outros precipícios...
Afinal, tudo é tão claro e se passar um dia ou dois, nem sequer se lembrará o quão profunda é a cova. Mas no momento é só a dor tentando provar que sempre está lá, não importa para onde se vai, para onde se olha. Cruel amiga inseparável que se faz lembrar a todo instante através das pedras que ela insiste em chutar, mesmo sabendo que os pés podem sangrar.
Pois chega uma hora em que não há mais o que largar, então se abandona a si mesmo. E mesmo assim, lá estará ela... Imortal inabalável, sedutora melancolia que tantas vezes fez-se de falsa desculpa, agora tão concreta realidade.
Então ela dormirá o tempo que for preciso, e quando acordar, espera não descobrir que cavou tão fundo a ponto de não saber mais como sair.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

De onde vem a força

Venha aqui e mostre tua força, sei que é disso que gosta. Teu olho de caçador detecta meu medo e se diverte. Para ti sou bola de lã, sou inseto indefeso, geléia não tóxica.
Venha e aproveite, vês como sou vulnerável?
Venha, pergunte o que quiser, sempre direi o que espera. Não te chocarei, não te surpreenderei. Pois na mesma proporção em que cresce meu ódio, cresce minha dependência.
Estou presa a ti, na verdade sempre estive. Já nasci com a tua mão agarrada ao meu braço, controlando meu pulso, sugando meu sangue.
Pois eu digo que agora podes vir e fazer o que sempre fez, não vou apresentar resistência, tenho preguiça de lutar.
Venha, chegue perto, aponte teu dedo no meu rosto quando este te parecer erguido demais. Sei que o que tu quer é que eu baixe meus olhos, veja a sujeira dos teus sapatos e me apresse em limpá-los.
Venha e dite tuas ordens absurdas. Mande-me fazer e desfazer por capricho. Eu sei disso, mas farei mesmo assim.
Pois é tu quem decide o que eu como, onde eu durmo e com quem. És tu quem governa e controla meus ímpetos, e grita mais alto quando tento ir além do sussurro.
Venha, fale o que quiser, tu estarás sempre certo. O não travará na garganta, pois verei a chama nos teus olhos lá no alto e não ousarei soltá-lo.
Venha e se aposse da minha sobrevida, eu a tenho somente para ti.
Há tempos não uso relógio, pois sei que a hora certa é a tua. Há tempos não preciso pensar, minhas idéias não valeriam de nada diante de uma ordem tua.
Pois então venha e ordene meus movimentos, eu os podarei e somente guiarei minhas pernas para onde disseres que devo ir. E não desejarei mais o próximo céu, não tentarei pular os muros, pois provei a tua ira e aprendi a lição.
Não sonharei mais quando dormir, tu me ensinaste a acordar antes. E hoje minha mente é tua, me digas o que pensar, e assim o farei quando mandar.
Mas quando te cansar de mim, quando não lhe for mais útil... lembra-te de me jogar num lugar limpo, onde eu possa reconhecer meus pedaços e tentar juntá-los.